Crítica – Nimuendajú

Animação mineira com técnica de rotoscopia estreia no Festival de Annecy em um gesto de escuta e resistência dos povos originários.

Baseado na trajetória real do etnólogo alemão Curt Unckel (1883–1945), que adotou o nome indígena “Nimuendajú” (que significa “aquele que conquistou o seu lugar no mundo”), o filme retrata as quatro décadas que ele passou no Brasil até a sua morte. Ao longo de anos em aldeias Guarani, Apinayé, Canela-Rankokamekra e Tikuna, Curt se dedicou a registrar línguas, mitos, rituais e sonoridades e acabou tomando posicionamento firme contra a violência de latifundiários, do governo e da opinião pública que ameaçavam os povos que estudava. Sua luta culmina em ações diretas, denúncias e liderança indígena, até uma morte misteriosa em 1945, no alto Solimões.

Dirigido por Tania Anaya e produzido por Peter Ketnath, que também interpreta o protagonista, o longa foi gravado ao longo de mais de 13 anos, incluindo filmagens em três aldeias, com participação ativa dos povos retratados. Essas gravações possibilitaram a aplicação da técnica de rotoscopia, que envolve o rastreamento de imagens de ação ao vivo, quadro a quadro, para criar animações com movimentos realistas.

Nimuendajú – O2 Play (2025)

Tania opta aqui por um olhar menos didático e mais de testemunha. Ela retrata com paixão a vida de um homem que deixou o seu país para viver em meio a povos indígenas. Curt é branco, estrangeiro, cientista e poderia facilmente se tornar o “herói colonizador” presente em muitas obras cinematográficas. Mas aqui o filme preserva sua integridade ao enfatizar a escuta, o aprendizado e o respeito. Numa escolha visual poderosa, a diretora recorre à animação sobreposta a filmagens reais feitas em aldeias indígenas, criando uma textura única e quase sensorial.

A voz de Peter Ketnath encaixa como uma luva na interpretação do personagem-título, trazendo profundidade à narrativa e contribuindo significativamente para a imersão do espectador. É através dele que acompanhamos um cientista se tornar um aliado, quase guerrilheiro, dos povos indígenas em suas batalhas contra os latifundiários.

Nimuendajú – O2 Play Filmes (2025)

O filme surge em um momento político recente e decisivo. Em tempos de avanço conservador e ataques sistemáticos aos direitos dos povos indígenas, lançar um filme como Nimuendajú é um ato de resistência. O tema da redação do Enem 2022, por exemplo, foi “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”. É importante abordar a história desses povos, seus conhecimentos ancestrais, os desafios que enfrentam para manter suas culturas e territórios, e a importância da valorização e reconhecimento de seus direitos. E o mais interessante é que, ao invés de apenas “narrar” ou documentar sobre os povos originários, a diretora decidiu criar e gravar o filme com eles, incluindo-os em uma obra que fala com os indígenas, ao invés de por eles.

Somos lembrados que o Brasil é feito de muitas vozes e foi construído em cima da exploração desses povos, que a atualidade insiste em ignorar. Curt não apenas estudou, mas se deixou transformar pelos povos indígenas, e sua luta ecoa uma batalha que deveria ser de todos nós: a preservação da nossa cultura original.

Nimuendajú é um filme que precisa ser visto, inclusive como objeto de estudo por crianças e adolescentes em escolas, para que a nova geração não se esqueça da importância da memória, da escuta e da defesa dos povos que formam a verdadeira raiz do Brasil.

 

Filme assistido no Annecy International Animation Film Festival (2025)

Crítica por Pedro Gomes.

Feature Films Contrechamp

 

Nimuendajú
Brasil/Peru, 2025, 85min.
Direção: Tania Anaya
Roteiro: Anna Flávia Dias Salles
Elenco: Peter Ketnath, Izadora Fernandes, Wilson Oliveira
Produção: Tânia Anaya, Peter Ketnath, Luana Melgaço
Direção de Arte: Adriane Puresa
Classificação: Não definida
Distribuição: O2 Play Filmes

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