Um drama familiar que provoca, mas deixa lacunas.
O longa, baseado no livro de memórias Non sarà sempre così, de Luigi Celeste, é um drama familiar sombrio que aborda a tragédia da violência doméstica em uma pequena cidade italiana. Misturando elementos de melodrama, thriller psicológico e até nuances de horror, a narrativa acompanha os desafios de uma mãe e seus filhos enquanto tentam romper os ciclos de abuso perpetuados por um pai violento e opressor. Concorrendo na seção Orizzonti do Festival de Cinema de Veneza, o filme convida o espectador a uma profunda reflexão sobre o impacto da violência testemunhada na infância e como esses traumas se perpetuam e nos moldam.
É um filme visualmente impactante, com dinâmicas de foco que nos fazem emergir na história e criam a sensação de estarmos vivenciando aquelas cenas, como testemunhas silenciosas. Essa abordagem intensifica a tensão e nos aproxima das emoções dos personagens, gerando até um incômodo, como se fôssemos visitantes indesejados.

Na metade do filme, a narrativa se concentra principalmente em Gigi, o filho mais velho, que luta para lidar com a ausência paterna e os traumas de uma infância marcada pelo sofrimento da mãe. Em sua tentativa de encontrar um sentido para sua existência, Gigi busca aceitação em um grupo extremista liderado por Fulvio. Essa escolha retrata não apenas sua crise de identidade, mas, se olharmos atentamente, também uma crítica social mais ampla: a obra expõe como tais ideologias fomentam a raiva e estão sempre em busca de inimigos — sejam eles vizinhos, pessoas LGBTQIA+, migrantes ou outros grupos marginalizados.
Francesco Di Leva entrega uma atuação convincente como Gigi, transmitindo a luta interna de um jovem perdido que, ao mesmo tempo, rejeita se tornar como o pai. Ele representa uma juventude desorientada, buscando preencher lacunas emocionais por caminhos equivocados.
No entanto, o filme peca ao tratar de forma superficial o outro filho da família. Apesar de sua presença em alguns momentos, ele é deixado à margem, o que gera uma sensação de desequilíbrio na narrativa. Fica a dúvida: como ele lidou com os mesmos traumas? Como convive com as cicatrizes dessa experiência? A ausência de um aprofundamento sobre sua perspectiva reduz o impacto emocional que a obra poderia alcançar, pois o filme poderia estar mais focado no outro lado da violência doméstica, mostrando que, infelizmente, existem outras vítimas tão afetadas quanto quem sofre o abuso diretamente.

A decisão dos filhos, já adultos, de se unirem para proteger a mãe parece tardia a ponto de frustrar o espectador. No final, eles esperam que muitas coisas aconteçam antes de tomarem uma atitude, tornando alguns momentos até tediosos e gerando um sentimento de insatisfação diante do desfecho inevitável que o filme constrói desde o início.
Ainda assim, o longa apresenta reflexões importantes sobre os ciclos de violência, as dinâmicas familiares e os impactos do abuso testemunhado. Ao misturar questões íntimas e sociais, como o renascimento de ideologias extremistas, o filme tenta expandir sua mensagem para além da trama familiar. Embora algumas escolhas narrativas deixem a desejar, é uma obra que provoca, incomoda e, em última análise, nos faz questionar como os traumas que carregamos nos moldam como indivíduos — e se, diante deles, é possível encontrar caminhos diferentes.
Crítica por Nathalia Macedo.
Família | Familia
Itália, 2024, 1420 min.
Direção: Francesco Costabile
Roteiro: Vittorio Moroni, Francesco Costabile, Adriano Chiarelli
Elenco: Francesco Gheghi, Barbara Ronchi, Francesco Di Leva
Produção: Attilio De Razza, Nicola Giuliano, Pierpaolo Verga
Direção de Fotografia: Giuseppe Maio
Música: Valerio Vigliar
Classificação: 16 anos
Distribuição: Imovision
Excelente análise. Tava querendo mesmo ver esse filme!