Um retrato-denúncia corajoso e verdadeiros sobre a invisibilidade do trabalho doméstico no Brasil.
Aqui Não Entra Luz é um documentário de abordagem investigativa que cruza memórias pessoais e pesquisas históricas para rastrear como a arquitetura e as práticas domésticas no Brasil conservam traços da escravidão e naturalizam a exploração do trabalho doméstico. A diretora, filha de uma trabalhadora doméstica, percorre estados marcados pela história da escravidão, conversa com mulheres que trabalham (ou trabalharam) nas casas alheias e mapeia como espaços (quartos de empregada, portas, entradas separadas) funcionam como mecanismos de segregação social que atravessam gerações.
Karol Maia transforma a investigação pessoal numa crítica política: o documentário não só dá voz às histórias individuais como mostra que a invisibilidade do trabalho doméstico é construída por arquitetura, ritmos de vida, relações familiares e narrativas públicas que condenam o serviço de cuidado como algo menos relevante. O longa parte da memória que a própria diretora tem do trabalho de sua mãe, de uma forma íntima e direta. O filme é uma tradução poderosa de algo que existe mas que nós insistimos em não enxergar: o fato de o trabalho doméstico no Brasil ainda carregar as marcas da escravidão.

O “quarto de empregada”, a trabalhadora “quase da família”, o “elevador de serviço”: tudo isso ganha uma força narrativa absurda. É como se os espaços falassem por si, mostrando que o país ainda mantém cicatrizes estruturais do passado. E o mais doloroso é ver como essas cicatrizes se escondem no cotidiano, como se fossem “naturais”. O filme revela que não é natural: é construção, é escolha, é herança. A subvalorização do trabalho doméstico no Brasil é um fenômeno profundamente enraizado que está diretamente ligado com a herança escravocrata do nosso país.
A montagem do longa é precisa e paciente, alternando entrevistas e observações do espaço físico em um ritmo bastante fluido. O silêncio tem peso central na construção da narrativa. Maia permite que o espectador experimente o vazio e a opressão de forma sensorial, permitindo uma reflexão profunda sobre o tema abordado. Não é um documentário confortável: sua proposta é justamente provocar incômodo e confrontar um problema estrutural que o país insiste em varrer para debaixo do tapete.

A fotografia de Wilssa Esser, Camila Izidio e Carol Rocha intensifica a sensação de claustrofobia ao retratar os espaços reduzidos destinados às trabalhadoras domésticas na arquitetura das casas brasileiras, sejam as construções antigas ou recentes. A direção madura de Karol faz com que o documentário encontre um ritmo próprio, que dá tempo para que os silêncios, os gestos e os espaços falarem tanto quanto as entrevistas.

Em suma, Aqui Não Entra Luz é um documentário que enxerga a potência do audiovisual como ferramenta política. Um filme essencial e necessário.
Crítica por Pedro Gomes.
Filme assistido no CineBH International Film Festival (2025)
Aqui Não Entra Luz
Brasil, 2025, 95min.
Direção: Karol Maia
Roteiro: Karol Maia
Elenco: Miriam Mendes, Karol Maia, Cristiane Graciano
Produção: Paula Kimo
Direção de Fotografia: Wilssa Esser, Camila Izidio, Carol Rocha
Música: Thais Nália, Evelyn Santos
Classificação: Livre
Distribuição: Embaúba Filmes
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