Um deslumbre visual de um conto de fadas cruel e realista.
Sean Baker demonstra mais uma vez talento em retratar beleza onde não tem, com seus filmes ficando marcados com a trilha sonora, principalmente na abertura. Antes mesmo de “Deadpool & Wolverine”, Sean deu um novo significado à música “Bye Bye Bye” em “Red Rocket”, seu último trabalho. Quem não lembra de Simon Rex acordando no ônibus ao som de NSYNC, ou até mesmo sua versão lenta reimaginada por Strawberry (Suzanna Son)? Em “Anora”, temos uma cena maravilhosamente bela e sensual para abrir o filme, onde corpos nus dançando em câmera lenta sob a luz do neon trazem um deslumbre visual, juntamente com “Greatest Day”, de Take That, Calum Scott & Robin Schulz. Mais uma música que vai ser impossível ouvir sem lembrar do longa.
No seu novo filme, Anora, uma profissional do sexo do Brooklyn, conhece e se casa impulsivamente com o filho de um oligarca russo. Assim que a notícia chega à Rússia, seu conto de fadas é ameaçado quando os pais de seu marido partem para Nova York para anular o casamento que até então mudaria o rumo de sua história.

Sean Baker é um cineasta que constrói um cinema profundamente humano, repleto de empatia. Seus filmes retratam, de forma singular, as vidas de pessoas que vivem às margens da sociedade: trabalhadores de subempregos, moradores de comunidades marginalizadas e aqueles que enfrentam desafios extremos em busca de alguma dignidade ou felicidade. À sua maneira, Baker consegue revelar uma beleza genuína nos recortes dessas vidas, mesmo onde pareça não ter. Crianças vivendo em motéis baratos à margem do sonho americano (“The Florida Project”), ex-astros da indústria pornográfica (“Red Rocket”) e agora, uma dançarina noturna (“Anora”) são exemplos de como o diretor desvia o foco do glamour para se concentrar em histórias de pessoas que muitas vezes passam despercebidas pelo grande público.
Em “Anora”, assim como em seus trabalhos anteriores, sua câmera ao invés de julgar, traz um retrato intimista, digno e verdadeiro, nos convidando a conhecer a protagonista como ela realmente é: com suas falhas, mas não isenta de esperança, humanidade e amor. Motéis e prostituição se tornam palco de cores vibrantes que remetem à um conto de fadas, em uma jornada que ao mesmo tempo é triste, divertida e reflexiva.

A protagonista é extremamente bem desenvolvida e magistralmente interpretada por Mikey Madison, um dos maiores destaques de atuação feminina em 2024. Além de Madison, quem rouba a cena completamente durante todo o filme é o ator Yura Borisov, que interpreta Igor. Ele é um personagem surpreendente que se destaca por sua gentileza e respeito, sendo o único a tratar Anora de forma genuína, sem segundas intenções. Há uma beleza importante na forma como ele foi escrito. Sua presença traz leveza ao filme, arrancando boas risadas do espectador, suavizando e dando vida à um ambiente extremamente caótico e conturbado. Mesmo com poucas falas, Yura entrega uma interpretação magistral de um personagem poético e ao mesmo tempo silencioso.
A fotografia é extremamente intimista e glamurosa, com tons de vermelho e neon durante a maioria das cenas. Os tons vibrantes podem ser relacionados ao erotismo e à sedução, referenciando a forma que Ani é vista ao seu redor. À medida que o filme avança, a paleta de cores se transforma gradualmente, trocando os tons quentes e brilhantes por cores mais frias e desbotadas, refletindo o processo de desilusão da personagem.

ALERTA DE SPOILER.
É impossível falar de “Anora” sem mencionar sua cena final, um momento que é resultado de toda a complexidade emocional do filme. Depois de passar a maior parte do tempo com Vanya, se mostrando uma mulher forte e independente, Ani finalmente desmorona em um momento íntimo e devastador com Igor. Pela primeira vez ela é confrontada com alguém que a enxerga como um ser humano, e não como um objeto de prazer. Esse confronto desestabiliza a protagonista profundamente, como se todas as barreiras que ela construiu para sobreviver fossem desarmadas de uma vez. O choro amargo que ouvimos antes dos créditos é um grito silencioso de toda uma vida marcada pela desumanização e pela falta de afeto.
O que torna essa cena tão poderosa é a forma como Sean Baker desmistifica o glamour e a beleza que estavam presentes durante toda a narrativa. A escolha de tons frios e cinzentos no enquadramento final reforça a ideia de que o neon brilhante e a sedução superficial, assim como os contos de fadas, não existem na vida real. Ani não compreende a ternura e a gentileza, pois são coisas que ela não conhece; e o desmoronamento dela nos braços de Igor é um choque de realidade tanto para a personagem quanto para o espectador. Quando os créditos sobem, o que permanece não são as risadas e momentos leves que tivemos ao longo da trama, mas o peso da dor de Ani, seu choro amargo e a verdade de uma vida que nunca deu à ela a chance de acreditar em algo além da sua objetificação.

“Anora” é um dos melhores filmes de 2024. Belo e cruel, o filme é uma jornada agridoce por um conto de fadas cru e realista. Ainda sem previsão de estreia, essa é uma obra que não pode se manter fora do radar.
Crítica por Pedro Gomes.
OBS: Crítica escrita no dia 11 de outubro de 2024 e republicada em prol do lançamento do filme em circuito comercial. “Anora” estreia amanhã nos cinemas brasileiros.

Anora
Estados Unidos, 2024, 139 min.
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker
Elenco: Mikey Madison, Mark Eydelshteyn, Yura Borisov
Produção: Alex Coco, Sean Baker, Samantha Quan
Direção de Fotografia: Drew Daniels
Música: Joseph Capalbo
Classificação: 16 anos
Distribuição: Universal Pictures










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