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Crítica | A Chegada (2016)

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Em certo momento de A Chegada, um dos personagens comenta que só é possível compreender plenamente um idioma quando a pessoa já está tão imersa nele, que passa a formular suas ideias em tal língua. Aprender um idioma, então, é mais do que expansão cultural, é um exercício de empatia, uma forma de nos inserirmos nos sapatos de terceiros e vermos o mundo com seus olhos. Nesse filme de Denis Villeneuve (de Os Suspeitos e O Homem Duplicado), a filóloga, linguista e professora Louise Banks (Amy Adams) é escolhida pelas autoridades americanas para tentar começar um diálogo com uma misteriosa raça alienígena que chegou na Terra em naves no formato de conchas.

Diferente do que a sinopse pode sugerir, não trata-se exclusivamente de uma ficção científica. Como todo bom filme do gênero, utiliza tal roupagem, mas traz no cerne de sua narrativa um lindíssimo estudo sobre comunicação, tempo e livre-arbítrio, entrelaçando tais temas de forma sensível e extremamente poética. A Chegada já é extremamente intenso em seu primeiro ato, abrindo com uma sequência de lembranças da protagonista de seus momentos com sua filha, a fotografia alterna planos bem iluminados com tons alaranjados e outros com baixa luminosidade e forte presença de um azul esbranquiçado, ressaltando os bons e maus momentos que Louise teve com sua filha ao longo da vida.

Visando criar no público a mesma expectativa que há em sua protagonista, o filme por muito mantém oculta a imagem das naves. Mesmo antes do primeiro contato entre Louise e os “visitantes”, observamos um constante uso de planos com um leve e gradual zoom, impondo a lenta imersão de Louise na situação envolvendo os alienígenas. Como grandes cineastas fizeram, Villeneuve é inteligente ao utilizar tais movimentos de câmera para preparar seu público para o desenvolvimento da narrativa. Diversos momentos de A Chegada se iniciam com planos que enquadram o teto de algum ambiente, enquanto lentamente a câmera desce e muda sua perspectiva, enquadrando o horizonte que normalmente veríamos ao olhar para frente. A mensagem é clara: estamos, assim como os personagens, com o foco errado, e embarcamos na viagem do filme para, aos poucos, nos desprendermos de conceitos prévios e encontrarmos um novo ponto de vista, como fazem os planos do longa.

Mas é quando Louise finalmente entra na “concha” que temos um perfeito retrato da situação que Villeneuve quer nos expor com o filme. O cenário não poderia ser mais simbólico: a parte onde os humanos ficam, com um visual rústico e rochoso, é extremamente escura, pouco iluminada, enquanto a tela por onde se comunicam com os “heptapods” é não só totalmente iluminada, como a única fonte de luz presente para os humanos. Com tal conceito visual, Villeneuve não está só expondo a ignorância que paira sobre o ser humano, mas construindo um elo metalinguístico. A tela que serve de ponte para os ‘heptapods” se comunicarem com nós, humanos, representa também a tela do cinema. Villeneuve faz de sua arte um instrumento de comunicação para nossa sociedade. É também interessante a constatação de que, mesmo tendo noção de que é seguro aproximar-se da “tela”, apenas Louise e Ian o fazem, pois em todo o elenco, só os dois personagens estão dispostos a ouvir e compreender o que é apresentado para a humanidade.

Fortalecendo tal ideia da busca por conhecimento, é notável o uso de reflexos de luz nas roupas de Louise, quase no formato de raios, dando forma ao conhecimento que aos poucos a personagem adquire dos alienígenas. Tal reflexo, então, torna-se cada vez maior a medida que a protagonista se aproxima da tela, até que em certo momento do filme, quando Louise já é plenamente capaz de comunicar-se diretamente com nossos visitantes, esta é banhada inteiramente por tal luz branca. Ainda na concha, percebe-se a pequeneza do ser humano como um todo se interpretarmos a presença do pássaro engaiolado como uma patética tentativa de demonstrar poder (que é, obviamente, ignorada pelos heptapods). Também merece destaque a precisa escolha da trilha sonora de só usar vozes humanas em corais quando Louise finalmente consegue alguma interação com os alienígenas. Antes, a trilha limitava-se à temas mais simples que construíam a tensão das cenas.

Merece destaque também a montagem de Joe Walker, que precisamente insere as memórias de Louise espaçadamente em cenas nas quais a personagem tenta refletir. Há uma cena em que a personagem caminha por um enorme campo aberto e são inseridos os já mencionados fragmentos de memórias felizes e tristes da vida da linguista, com cores  chapadas no laranja e no azul, intercaladas pelas cenas do presente, nas quais a iluminação natural e o destaque do verde da grama (além do perfeito design de som, que enaltece o som do vento), ressaltam a ideia da naturalidade dos altos e baixos da vida, que mais tarde são aprofundados na narrativa.  Outro sutil detalhe da fotografia de A Chegada é a manutenção da baixa iluminação nas bases militares onde Louise e sua equipe trabalham para decifrar a linguagem alienígena. Curiosamente, nem as luzes dos computadores são suficientes para tornar o ambiente claro, sendo quase sempre uma fonte de luz azulada e fraca (diferente do forte branco da tela dos heptapods). O ser humano não consegue mais desenvolver seu conhecimento pela tecnologia.

Como a realidade nos mostra, precisamos voltar à base da humanidade, precisamos ir ao pilar de toda civilização, a única fonte de conhecimento plena: o diálogo. Tal sugestão é também bem sugerida na construção do tempo do filme e em pequenos detalhes como o nome da filha de Louise, que nos mostram que para evitarmos nosso fim, devemos refazer nosso caminho e reencontrar nossas origens. A Chegada é um ensaio sobre nossa civilização. Evidenciando como nós nos perdemos e como devemos proceder para achar nosso caminho. Um filme que por sua metalinguagem nos faz voltar aos primórdios de nossa espécie, nos mostrando que o diálogo é o único caminho para o bem comum. Pode ser tarde demais para nossa arrogante geração, mas não precisa ser tarde demais para nossa civilização. Mais do que um simples sci-fi, uma carta para a humanidade em forma de obra-prima cinematográfica.

Esta crítica é uma reprodução originalmente publicada no site Plano Aberto.
“Arte e entretenimento com conteúdo. Cultura pop pra quem vai além das sinopses.”