Le Bambine retrata a beleza na coragem de ser criança.
Le Bambine conta a história de Linda, de oito anos, que se muda da luxuosa vila suíça em que morava com a avó rica para ir, junto com a mãe, Eva, para a Itália. Lá, conhece as irmãs Azzurra e Marta. Um encontro de verão ao acaso une as três meninas em uma espécie de gangue, determinadas a proteger umas às outras, sua juventude e liberdade de um mundo que insiste em apressar seu crescimento. Ao redor delas, giram pais egoístas e vulneráveis em busca de sonhos frágeis, vizinhos fofoqueiros e reprimidos e uma babá queer à procura de pertencimento em um mundo homofóbico.
As três meninas constroem um pequeno universo próprio enquanto o mundo adulto se mostra distante, desinteressado e incapaz de oferecer afeto genuíno, no qual lutam contra o amadurecimento precoce. O filme trata de como os anos iniciais se tornam uma espécie de abrigo emocional quando tudo ao redor falha, e como a imaginação e a inocência infantil são capazes de oferecer proteção.
O coração da obra, que bebe muito da fonte de The Florida Project (2017), pulsa justamente no contraste entre o mundo real e o mundo que elas inventam. As três crianças percebem, ainda muito cedo, que os adultos não estão preparados (ou minimamente interessados) em acolher suas emoções, que são incompreensíveis ao próprio olhar das pequenas. Diante dessa ausência, criam um universo simbólico que passa a funcionar como uma fortaleza invisível, construída de brincadeiras, segredos e códigos particulares. Esse gesto de imaginação não é uma simples fuga; o filme transforma o ato de brincar em uma resposta política à pressa imposta à finalização da infância e o início da fase adulta.
A infância é retratada como um território vulnerável, mas também como um espaço de construção de identidade. Ao inventarem histórias, nomes de guerra e rituais de amizade, Linda, Azzurra e Marta estão reconstruindo inconscientemente a ideia de pertencimento. A imaginação é uma ferramenta de cura utilizada pelas crianças para dar sentido a um mundo que não faz sentido algum.
“Você só pode ser bela se for estranha.”
Há um contraste muito claro entre o mundo das crianças e o dos adultos no longa. Os adultos são figuras opacas, distantes, embaçadas e deformadas pela própria apatia. Já as meninas são uma mistura de cores, curiosidade, barulho, desordem. Essa oposição constrói uma crítica poderosa ao estado de vida robótico e cinza que a maioria das pessoas leva, nos fazendo enxergar que talvez a infância seja o último espaço possível de liberdade e autenticidade.
O ritmo da narrativa reflete essa divergência entre infância e amadurecimento. Há momentos quase contemplativos, de pura observação, e outros em que a câmera parece seguir uma lógica mais fluida. Essa alternância cria uma sensação de instabilidade, como se o filme, assim como suas protagonistas, estivesse tentando entender o que significa crescer ou como se estivéssemos assistindo fragmentos de memórias de um adulto já afetado pela crueza da vida, tentando se lembrar da beleza da infância.
Ser criança, neste filme, é um ato de coragem. A coragem de continuar sonhando, mesmo diante de um mundo que insiste em esmagar cada sonho. É o gesto de se inventar e se descobrir, de se permitir sentir sem medo, de criar luz. Le Bambine nos convida a revisitar essa criança interior que ainda habita em nós: pequena, livre, indomável. Ao olhar para essas meninas, reacendemos a faísca que um dia nos moveu. A migalha de imaginação e delicadeza que sobrevive, silenciosa, mesmo quando crescemos e o mundo se torna árido demais para o encanto.
Crítica por Pedro Gomes.
Filme assistido no 27ª Festival do Rio – Rio de Janeiro Int’l Film Festival (2025)
Meninas | Le Bambine
Itália, Suíça, França, 2025, 105min.
Direção: Nicole Bertani, Valentina Bertani
Roteiro: Nicole Bertani, Valentina Bertani, Maria Sole Limodio
Elenco: Mia Ferricelli, Agnese Scazza, Petra Scheggia
Produção: Daniele Esposito
Direção de Fotografia: Marco Bassano, Luca Costantini
Música: Lorenzo Confetta
Classificação: 14 Anos
Distribuição: Não Definida