Brasil e França estreitam laços no RioMarket em torno de preservação cinematográfica

No terceiro dia do evento, o debate teve como foco a memória audiovisual, as políticas públicas e a articulação entre iniciativas institucionais e privadas.

A 27ª edição do Festival do Rio está realizando projetos que marcam a comemoração dos 200 anos de relações diplomáticas entre França e Brasil, com uma programação especial que reforça os laços culturais e a colaboração entre instituições dos dois países. No RioMarket, braço de negócios e mercado audiovisual do Festival, foi realizada uma palestra com profissionais da área de preservação de acervo audiovisual de ambos os países, que discutiram a importância dessa atividade para a valorização das obras e a manutenção do seu legado.

Sob mediação da cineasta e gestora cultural Alice de Andrade, o painel “Projeto Archives – Políticas de Preservação” reuniu Gabriela de Souza Queiroz (Cinemateca Brasileira), Laurence Braunberger (Les Films du Jeudi e Cinemateca Francesa), Daniel Borenstein (especialista em restauração e ex-diretor técnico do Arquivo de Cinema Francês/CNC) e Daniela Fernandes (Secretaria do Audiovisual/MinC). A conversa apontou os desafios técnicos e institucionais enfrentados por acervos públicos e privados, além das oportunidades de

intercâmbio criadas a partir da Temporada França-Brasil, iniciativa que vem promovendo uma série de colaborações entre as duas nações.

Anunciada pelos presidentes Emmanuel Macron e Luiz Inácio Lula da Silva, a Temporada França-Brasil é organizada pelo Institut Français e pelo Instituto Guimarães Rosa, com apoio dos ministérios da Cultura e das Relações Exteriores de ambos os países. No campo do audiovisual, a parceria se materializa por meio de simpósios e mostras em São Paulo e no Rio de Janeiro, realizados em colaboração entre o Centre National du Cinéma et de l’Image Animée (CNC) e a Cinemateca Brasileira.

Durante o debate, os convidados ressaltaram que preservar um acervo vai muito além de restaurar uma película. “A restauração e a preservação são diferentes”, explicou Daniel Borenstein. “A restauração é uma intervenção pontual, que requer um custo pontual. Já a preservação não se tem uma ideia de custo total. É para sempre — e isso requer um business plan.

A francesa Laurence Braunberger, vice-presidente da Cinemateca Francesa, destacou a importância da cooperação internacional entre instituições. “É fundamental que seja feito um trabalho em rede. As cinematecas do mundo todo precisam colaborar e fazer um intercâmbio de materiais, de negativos, de cópias e de conhecimento tecnológico”, defendeu.

O tema ganha ainda mais relevância no Brasil diante do histórico recente da Cinemateca Brasileira, que permaneceu fechada por quase dois anos, entre 2020 e 2022, em meio a uma grave crise administrativa. O período foi marcado por demissões em massa, um incêndio que destruiu parte do acervo e a suspensão de projetos de restauração. “Quando a Cinemateca foi fechada, foi uma época de hiato não só de restauração, mas de formação”, relembrou Gabriela de Souza Queiroz, diretora técnica da instituição.

Com a reabertura em 2022 e a reestruturação conduzida pela Sociedade Amigos da Cinemateca, novos planos de retomada foram traçados, mas a sustentabilidade financeira ainda é um desafio. “Em 2022 tínhamos um contrato de 14 milhões para o funcionamento da instituição. Esse valor variou nos anos seguintes, e este ano solicitamos ao Congresso Nacional um aumento para 24 milhões”, detalhou Gabriela, enfatizando a importância da estabilidade orçamentária para manter a rotina de conservação e digitalização de acervos.

Além da infraestrutura e dos recursos, a formação de profissionais foi apontada como prioridade. “As ações formativas são fundamentais. Promovemos seminários mensais voltados

para os profissionais da área e encontros com especialistas”, contou Gabriela. Ela também alertou para a necessidade de políticas públicas que contemplem arquivos privados de interesse público: “Esses filmes fazem parte da história do nosso país e também da história do cinema mundial”.

Como parte dessas novas diretrizes, a Secretaria do Audiovisual vai implementar o Inventário Nacional de Bens Culturais Audiovisuais, que visa identificar e catalogar obras e acervos brasileiros de reconhecido valor histórico, artístico e etnográfico. Desenvolvido em parceria com a Cinemateca Brasileira, o sistema reunirá informações sobre produções preservadas em cinematecas, arquivos públicos, universidades e instituições privadas, ampliando e consolidando as filmografias existentes no país.

A diretora da Secretaria do Audiovisual, Daniela Fernandes, chamou atenção para os riscos inerentes aos formatos digitais. “Os formatos mudam e, com isso, surgem novos desafios. A gente tem um mapa de perda de curtas-metragens já feitos em digital gigantesca”, relatou Gabriela, complementada por Daniela: “Quando um arquivo é corrompido, não é possível recuperar partes do material, como fazemos com as películas.”

Os franceses também ressaltaram as diferenças de infraestrutura entre os países. “Na França, temos a sorte de contar com apoio para preservar e digitalizar os acervos. Nem todos os países têm meios de fazê-lo e enfrentam dificuldades deontológicas”, afirmou Daniel Borenstein, destacando a importância de que países em desenvolvimento tenham acesso a recursos técnicos e financeiros para manter seus acervos vivos.

A cooperação entre Brasil e França vem se consolidando também no campo da política audiovisual. “Antes, a gente tinha um acordo de coprodução internacional dos anos 1990, mas ele só abrigava produção. A nova proposta feita com o CNC foi que a cooperação envolvesse também a preservação”, explicou Gabriela, em referência ao acordo bilateral firmado durante a abertura do RioMarket em 2024 — um marco inédito na relação entre os dois países.

Essa articulação se reflete também na programação do Festival do Rio, que neste ano apresenta títulos restaurados de Alberto Cavalcanti, como “Rien que les heures” (1926) e “Mulher de Verdade” (1954), com curadoria e supervisão de Laurence Braunberger. As sessões são seguidas de debates sobre o papel da restauração na reconstrução da memória audiovisual.

Ao final do encontro, Alice de Andrade resumiu o sentimento comum entre os participantes: a preservação cinematográfica é, antes de tudo, uma forma de resistência cultural. Entre os desafios orçamentários, técnicos e políticos, permanece a certeza de que conservar imagens é também conservar a história, o imaginário de um povo e que a cooperação entre Brasil e França, reforçada no RioMarket, é um passo importante para garantir que essa história continue sendo contada.

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