Uma desconfortável e emocionante reconexão familiar em um pesadelo epidemiológico.
“Estranho Caminho” conta a história de um jovem cineasta que retorna à sua cidade natal em meio à crescente crise da pandemia de Covid-19. O retorno inesperado é motivado pela necessidade urgente de se reconectar com seu pai, com quem não mantém contato há mais de uma década. O filme é construído sobre uma base de melancolia, metáforas, sonhos lúcidos e pesadelos, e a junção desses elementos cria uma atmosfera única, raramente vista no cinema brasileiro.
Inspirado no estilo de David Lynch, o longa mergulha profundamente na complexidade das relações humanas, revelando a tensão entre a arte, a identidade e os desafios emocionais de uma vida em transição. A pandemia é retratada com elementos que remetem ao horror, conferindo um clima sombrio a um passado assustador e, infelizmente, não tão distante.

A narrativa é construída de forma delicada e sublime, retratando com sucesso a intensidade dos dilemas e emoções vivenciados pelo protagonista. Guto Parente expõe a relação entre pai e filho, por vezes conflituosa, por vezes amorosa, unida por um emaranhado de mistério e arte.
A fotografia é, sem dúvida, um dos maiores pontos positivos dessa obra, com o uso de uma câmera frequentemente estática e contemplativa, que captura a beleza e a melancolia que permeiam o Nordeste em meio à pandemia. A sonoridade, que alterna entre silêncios prolongados e sons graves cada vez mais intensos, amplifica a sensação de isolamento e introspecção.

A paleta de cores é suave e terrosa, com uma predominância do amarelo, que contribui para a atmosfera de saudade e incerteza. Essas tonalidades podem ser interpretadas como uma representação da conexão do protagonista com sua terra, suas raízes e memórias. A escolha cromática provoca uma sensação de nostalgia, como se David estivesse diante de um passado próximo, mas desbotado, fragmentado e inalcançável. Com o poder das cores, a cidade natal se torna um personagem, representando um espelho distorcido de suas recordações, onde ele confronta o familiar e, ao mesmo tempo, o desconhecido.
O filme traz uma importante reflexão sobre luto e perda e, ao não oferecer respostas fáceis ou soluções claras, mostra que o caminho para a cura pode ser estranho, tortuoso e sempre imprevisível. Uma obra que também aborda esses temas é “Fantasmas”, de André Novais Oliveira. Embora diferentes em formato e duração, ambos os filmes retratam como o passado influencia e molda o presente, e como os personagens enfrentam as assombrações de suas vidas. O retorno ao espaço familiar, presente em ambas as obras, serve como um catalisador para que os personagens enfrentem os fantasmas do passado, lidando com sentimentos não resolvidos.
“Que estranho caminho tive que percorrer para chegar até ti.”
A performance de Carlos Francisco é arrebatadora, refletindo as batalhas pessoais de seu personagem em diálogos esparsos, mas carregados de significado. A direção é paciente, permitindo que o público tenha o tempo necessário para absorver toda a sutileza que não é dita. Lucas Limeira brilha em sua naturalidade ao interpretar David, elevando o nível do longa-metragem de forma sincera e marcante.

“Estranho Caminho” é uma obra sensível, poderosa e reflexiva, que nos convida a pensar sobre nossas estranhas trajetórias em busca de identidade e significado. Trata-se da beleza da perda, do reencontro e do imprevisível. É uma obra sobre a vida e, sobretudo, sobre a arte de viver.
“Para todos os nossos mortos.”
Crítica por Pedro Gomes.
Crítica republicada em razão da exibição do filme na 19a CineBH em 2025
Estranho Caminho
Brasil, 2023, 83 min.
Direção: Guto Parente
Roteiro: Guto Parente
Elenco: Lucas Limeira, Carlos Francisco, Rita Cabaço
Produção: Ticiana Augusto Lima, César Teixeira
Direção de Fotografia: Linga Acácio
Música: Uirá dos Reis, Fafa Nascimento
Classificação: 16 anos
Distribuição: Embaúba Filmes
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