20ª Mostra de Cinema de Ouro Preto reexibe o clássico curta-metragem de Anna Muylaert.
Curta-metragem lançado em 1995, A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti conta a história de Kiki, uma criança de seis anos que tenta desvendar o mistério da origem dos bebês através de suas aulas de ciências e do relacionamento amoroso conturbado de seus pais. De forma fofa, engraçada e extremamente educativa, Anna Muylaert desenrola a trama sob uma ótica infantil. O que acontece quando uma criança tenta decifrar o que os adultos escondem? A diretora revoluciona ao construir uma obra profundamente crítica, ao mesmo tempo em que exibe a beleza de ver o mundo através dos olhos inocentes de alguém que ainda não foi contaminado pelo medo, pela vergonha ou pela norma.
O ponto mais alto do filme é o carisma da atriz mirim Beatriz Botelho, que entrega uma interpretação genuína e convida o espectador a voltar à infância, abandonando a lógica adulta sobre a sexualidade e abraçando o descobrimento do mundo de forma completamente lúdica e inocente. A fotografia, quase neutra, permite que o pensamento livre, mesmo que absurdo, de uma criança que tenta entender o mundo à sua maneira, nos guie durante a narrativa.

É importante lembrar que o curta foi feito num tempo em que discutir abertamente a sexualidade de forma educativa era quase um tabu. Muylaert, no entanto, caminha nessa linha com elegância e respeito. Nunca há exploração, nunca há grotesco. Há curiosidade, desejo de saber, invenção e uma escuta profunda da infância.
Afinal, a natividade é um dado da natureza, do corpo, da vida. Mas existe uma diferença crucial entre o que é natural e o que é acessível (ou adequado) para uma criança. Cegonhas e outras histórias são contadas até hoje para contornar o assunto de como os bebês nascem. Kiki tenta compreender o mundo por conta própria, porque os adultos ao redor se recusam a lhe oferecer uma explicação verdadeira, talvez porque a verdade seja incompreensível para alguém da sua idade. A tensão do curta está justamente aí: na coragem de retratar o momento em que uma criança, sozinha, tenta dar conta de um mistério que os adultos negam. E no choque entre o olhar inocente e uma descoberta que, apesar de natural, não é adequada à sua maturidade emocional. Não por ser “proibida”, mas por ser precoce demais.

O curta não romantiza a descoberta precoce dessa verdade. Ele mostra que até mesmo os acontecimentos mais naturais, como o nascimento, podem se tornar angustiantes quando não há linguagem, escuta ou cuidado para acolhê-los. A curiosidade precoce de uma criança, ainda mais nos tempos de hoje, deve ser tratada com extrema cautela. Crianças fazem perguntas porque estão tentando organizar o mundo. Perguntar como os bebês nascem, de onde eles vêm, o que é o corpo são questões naturais, e ignorá-las, reprimi-las ou respondê-las de forma inadequada pode gerar confusão, trauma e culpa.
Isso é justamente o que o curta de Muylaert expõe com ironia: a ausência da palavra adulta abre espaço para a imaginação solitária, que pode ser criativa mas também bastante perigosa. O curta-metragem foi feito em 1995 e, hoje, 30 anos depois, as crianças têm acesso à informação de maneira muito mais fácil com o “auxílio” da internet. A criança precisa saber que pode perguntar tudo, e os pais devem criar um ambiente seguro, onde ela não será julgada, ridicularizada ou punida por suas dúvidas. Se a pergunta for recebida com escândalo ou desconforto, ela pode não perguntar da próxima vez e buscar respostas em outras fontes.

A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti é, no fim das contas, um filme sobre o poder da imaginação infantil diante do silêncio dos adultos. Embora toque em temas como sexualidade, descoberta e natalidade, ele o faz com uma leveza rara, própria de quem respeita a inteligência das crianças sem lhes roubar a inocência. Muylaert não quer chocar; quer mostrar como Kiki vê o mundo. E é nessa distância entre o que ela imagina e o que o mundo adulto esconde que o filme encontra sua graça. Mais do que informar ou educar, o curta convida o espectador a lembrar como era ver o mundo sem saber, quando a curiosidade e a ingenuidade dominavam nosso pensamento.
Ao revisitar esse filme hoje, é inevitável cruzar a fronteira da discussão ética sobre infância, representação e limites. Mas é preciso também voltar ao foco essencial da obra: o olhar curioso de uma criança que, diante da ausência de respostas, cria suas próprias verdades.
Crítica por Pedro Gomes.
Filme assistido na 20ª Mostra de Cinema de Ouro Preto.
Mostra Histórica.
A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti
Brasil, 1995, 16min.
Direção: Anna Muylaert
Roteiro: Anna Muylaert
Elenco: Marisa Orth, André Abujamra, Patricia Gaspar , Beatriz Botelho
Produção: Anna Muylaert e Pico Garcez
Direção de Fotografia: Jacob Solitrenick
Música: André Abujamra
Classificação: 10 anos
Distribuição: África Filmes










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