Félix Dufour-Laperrière reflete sobre identidade e pertencimento em Death Does Not Exist no Festival de Annecy (Íntegra)

“A floresta é um desejo em ebulição.”

Em seu mais recente filme, Death Does Not Exist, o cineasta canadense Félix Dufour-Laperrière aprofunda sua exploração poética sobre existência, identidade e território. O diretor nos apresenta uma obra desafiadora, conduzida por uma personagem que reflete sobre a própria ausência e presença no mundo.

Durante o Festival de Annecy 2025, Pedro Gomes, nosso sócio-fundador e crítico de cinema, conversou com Dufour-Laperrière sobre o nascimento do projeto, e o simbolismo por trás dos elementos principais que compõem a narrativa.

Para ler a crítica do filme, clique aqui.

A seguir, você confere a entrevista completa:

Death Does Not Exist – Annecy International Animation Film Festival (2025)

Pedro Gomes: Fiquei um pouco curioso para saber como esse projeto surgiu. De onde veio a ideia do filme?

Félix Dufour-Laperrière: Eu queria explorar as consequências daquela radicalidade, daquela radicalidade violenta. Essa foi a primeira parte. Eu queria começar com isso, o início seria o ataque, e o roteiro foi construído ao redor desse ataque. A segunda origem é um flashback, sabe, entre Manon e Hélène. Eles meio que caem juntos num ciclo, e há um retorno que os faz cair juntos. E esse paradoxo entre lealdade e violência, amor e violência, era algo que eu queria explorar. Essa é a origem do projeto. E o roteiro foi escrito… o filme se parece com o processo de escrita. Tipo, ele vai ligando pontos diferentes e, por exemplo, durante o processo de escrita, os personagens tomaram decisões diferentes. Mudou muito, foi evoluindo. Foi um processo.

Pedro Gomes: Ah, achei que você não tivesse mudado nada desde o primeiro esboço.

Félix Dufour-Laperrière: Não, mudou bastante. Não vou dizer quais decisões foram tomadas, mas houve muitas versões com decisões diferentes. Era um tom ainda mais sombrio. O primeiro rascunho era bem fatalista. Tentei abrir um pouco mais, dar mais espaço para amizade, conexões, vínculos, amor, e algo que servisse à vida.

Pedro Gomes: Você diria que o cenário político atual do Canadá teve alguma influência na história do filme?

Félix Dufour-Laperrière: Um pouco. O filme se inspira em um momento muito tenso dos anos 70, quando um grupo de jovens ativistas sequestrou e acabou matando um ministro, um delegado britânico e um ministro do governo federal. O exército foi enviado às ruas. Houve muitos intelectuais e artistas envolvidos. Foi um momento muito denso. Houve lei marcial. Não adaptei esse evento específico, mas quis explorar a tensão que surge a partir de eventos desse tipo. Então há uma ligação com eventos históricos e a tensão que eles trazem para a realidade. Mas a vida atual no Quebec e no Canadá é bem calma. O filme também se inspira em grandes protestos estudantis e sociais de 2012, que começaram por causa das taxas universitárias, mas depois se expandiram para uma visão mais ampla de democracia social, e isso me interessou bastante. Fiquei curioso: o que aconteceria se jovens adultos decidissem se radicalizar?

Pedro Gomes: Gostei do jeito como você colocou isso no filme. É bem reflexivo, sabe? E tem uma frase no filme que é bem poderosa: “A vida é movimento e o movimento tem um custo.” Você pode elaborar o que essa frase significa pra você?

Félix Dufour-Laperrière: Pra mim, ela tem dois significados no filme. É sobre o poder e a riqueza da autoridade de escolher. É isso que os seguranças representam: o poder de fixar uma imagem e torná-la imóvel e eterna. Mas a vida é movimento, então há um custo para romper com essa imobilidade. É um  paradoxo. É difícil. Você quer proteger, mas também precisa de movimento. Esse é o significado pra mim. É um paradoxo. É uma visão difícil sobre a necessidade de fazer as coisas se moverem, evoluírem, para que possam reagir à nova realidade do mundo e servir às pessoas reais que vivem agora. É abstrato. É um conceito.

Pedro Gomes: E sobre a decisão de fugir… o que você queria que o público sentisse?

Félix Dufour-Laperrière: É difícil mesmo. Pra mim, Hélène para porque ela reconhece algo de si mesma na senhora idosa. A velha consegue falar com ela, e elas compartilham um elo estranho. Ela reconhece algo de si mesma naquela mulher e, por isso, não consegue atirar. Ao parar, ela trai os amigos, e isso é trágico. São duas impossibilidades. E no final, é uma decisão trágica. Ela decide tentar ir, mas não pela violência — ela tenta salvar o amigo. É um engajamento paradoxal. Um paralelo.

Pedro Gomes: A gente entende ela… e também entende o amigo. É complicado. E a casa que eles invadem me pareceu muito simbólica, sabe? Mais simbólica do que literal. Sinto que tem um significado à mais.

Félix Dufour-Laperrière: Muito boa observação, e você está totalmente certo. É um espaço simbólico. Como eu disse, é sobre riqueza, mas também sobre a autoridade e o poder de escolher qual imagem será fixada e eterna. É o poder da forma, sobre a imagem que será mantida para sempre. Há também uma artificialidade. É uma floresta, mas dentro de uma casa, sabe? É uma natureza racionalizada, controlada e explorada — em oposição a uma natureza mais caótica, viva e imprevisível. Essa é a representação do poder e da riqueza: racionalizar tudo, mas isso tem um custo.

Pedro Gomes: Uma coisa interessante é que você escolheu mesclar os personagens com o fundo em muitas cenas. O que você queria expressar com essa decisão visual?

Félix Dufour-Laperrière: Eu queria que eles fizessem parte do contexto. É uma estratégia visual, mas também uma tomada política. As pessoas e os personagens estão dentro do contexto. Então, quando eles atiram, eles atiram em pessoas exatamente como eles. Mesma coisa com Hélène e a velha — quando estão na mesma sala, elas se parecem. São forçadas a estar no mesmo contexto, e isso traz à tona o que elas compartilham, a parte comum da existência e da experiência. Pra mim, era muito importante. É uma estratégia — e também uma relação com a abstração. Porque pra mim, não é dado que o filme será figurativo. Há uma tensão com a abstração. E essa abstração tem a ver, nos meus olhos, com a radicalidade das crenças, das convicções e dos atos delas. Reduzir a realidade a um campo de cor é um ato radical. Ele revela algo, mas também apaga outras coisas — e eu senti que isso tinha a ver com as crenças delas, com a radicalidade. Por outro lado, queria que o espectador entendesse que o fundo e o contexto também podem emergir do movimento, da interioridade, da experiência dos personagens. Há uma subjetividade forte que pode ser expressa assim. Eu pensei o filme como uma sequência de campos de cor. Logo no começo, nos créditos iniciais, e também no final — e há alguns no meio do filme. É uma sequência de cores que estrutura o filme.

Pedro Gomes: Falando em cor: no primeiro ataque, o sangue nos personagens é laranja, e no final, se torna vermelho. Pra mim, pareceu que a realidade só se concretiza mesmo na decisão final da Hélène.

Félix Dufour-Laperrière: Exatamente. Há uma suspensão. A sequência famosa é construída sobre essa suspensão — o plano-sequência em que a câmera se move. Ela pode estar se movendo por um bom tempo, ou pode estar parada, focando na mulher idosa. A gente não sabe, naquele momento, se Hélène está correndo ou não. Descobrimos depois. O sangue é dourado no primeiro ataque, porque há uma suspensão que será explorada ao longo do filme. E quando ela decide, o sangue é vermelho, tipo, vermelho denso e vívido.

Pedro Gomes: Qual foi o momento mais arriscado ou incerto na produção do filme? Porque ele é muito original.

Félix Dufour-Laperrière: O uso da cor foi muito arriscado. Foi um processo bem intuitivo — eu coloquei cada cor, em cada plano, em cada fundo, pessoalmente. Pra alguns planos, eu fiz tipo 100 versões diferentes. Era como pintar: ir e voltar, adicionar e remover. Intuitivo, mas com uma paleta muito racionalizada e limitada. Foi um processo exigente e cansativo. Tivemos problemas técnicos com a composição — a junção de todos os elementos — principalmente pela profundidade da floresta. A movimentação de câmera também trouxe muitas dificuldades técnicas. E era um projeto bastante modesto, então tivemos que ser muito bem organizados. Mas eu tinha uma equipe maravilhosa, muito inteligente e dedicada.

Pedro Gomes: Como você descobriu que a animação, e não o live action, era o seu caminho artístico?

Félix Dufour-Laperrière: Eu amo animação. Amo as possibilidades que ela oferece. Ela une o desenho, a pintura, e as forças visuais com a linguagem do cinema. É muito interessante ter todas essas ferramentas. É um trabalho muito exigente — muito tempo, muito dinheiro, muito de tudo — mas é uma ferramenta poderosa. Tem uma singularidade, uma peculiaridade. Você cria imagens diferentes, filmes diferentes, e isso é precioso. No começo, eu amava cinema, mas era um adolescente tímido. Não me imaginava no meio do caos de um set de filmagem de live action. Quando descobri os irmãos Quay e Jan Švankmajer, por exemplo, que faziam filmes curtos e maravilhosos sozinhos, direto na câmera… Foi incrível. Eu pensei: “É isso que quero fazer. Ficar sozinho no meu estúdio e fazer filmes.”

Pedro Gomes: E você teve que abrir mão de algo por causa do orçamento? Teve alguma limitação?

Félix Dufour-Laperrière: Sinceramente? Não, não nesse filme. Mas eu trabalhei dia e noite. Tínhamos um orçamento limitado, mas planejamos com sabedoria e trabalhamos como loucos. Foi o suficiente. Acredito que o filme não sofreu com a falta de orçamento. Ele tem qualidades e falhas — mas não por causa do dinheiro.

Death Does Not Exist – Annecy International Animation Film Festival (2025)

Pedro Gomes: Dá pra ver que você trabalhou muito e colocou coração e alma nesse filme. De forma muito artística e literária. E uma última pergunta: se você pudesse mostrar Death Does Not Exist para apenas uma pessoa no mundo — viva ou morta — quem seria?

Félix Dufour-Laperrière: Nunca pensei nisso… Acho que diria meu avô falecido. Devo a ele muito do meu pensamento político. Ele já morreu, então gostaria que ele visse, jovem ou com uns 40 anos. Seria uma honra para mim.

Pedro Gomes: Teve alguma cena em particular que foi mais difícil de dirigir ou escrever?

Félix Dufour-Laperrière: A cena do ataque. Precisou de muito planejamento. Era cara e complexa. Tudo estava em movimento: câmera, personagens, ações. Queríamos clareza. O desafio era não fazer um espetáculo da violência, mas torná-la concreta e real. Mostrar a consequência. Não queria evitar isso. Queria trazer a consequência real. Foi uma sequência que exigiu clareza e legibilidade. Foi muito, muito trabalho.

Pedro Gomes: E a floresta em si fala sobre decisões, né? Nossas decisões têm consequências. A criança diz para a Hélène que a floresta leva ao mesmo lugar, tipo, ela não consegue escapar. Então ela vai ter que encarar as consequências das decisões dela. Ela tem uma última chance, mas isso tem consequências.

Félix Dufour-Laperrière: Definitivamente. É trágico. É uma narrativa trágica. Como a vida — que às vezes é trágica.

Pedro Gomes: Sinto que a floresta quase parece um personagem por si só.

Félix Dufour-Laperrière: Também sinto isso. Pra mim, a floresta é, obviamente, um símbolo, mas também representa potencial. É o lugar de origem do que vai emergir quando os desejos — conscientes e inconscientes — e a raiva são incorporados nas revoltas. É quando tudo sai da ordem, quando o desejo mais íntimo se manifesta na realidade. A floresta representa esse potencial pra mim.

Pedro Gomes: Eu senti isso também. E sobre Mark e Hélène — a história de amor é sutil, mas bem significativa. Qual é o papel dessa história de amor no contexto do filme?

Félix Dufour-Laperrière: Eu queria proteger a coragem trágica dela. Então, se ela recua, também é por amor, por uma relação. E se ela volta, não é apenas pela violência ou pela causa — mas porque ela tem vínculos. É trágico, porque é por amor. Ela tenta salvar Mark e a amiga. Ela toma a decisão com base nas próprias crenças, mas também por lealdade. E eu amo isso. Me inspirei na minha própria experiência. Sou pai de dois filhos. Estou com a mesma mulher há 22 anos. É o que eu vivo, pessoalmente.

Pedro Gomes: Entendi. Compreendo bem. E o que tinha na carta do Mark?

Félix Dufour-Laperrière: Pra mim, é uma mistura. É uma declaração de amor, claro, mas também é um espaço para ele compartilhar dúvidas, o verdadeiro peso dos sentimentos e pensamentos dele — hesitações, contradições. E Hélène reconhece muito de si mesma na carta. Ela se emociona com aquilo.

Pedro Gomes: A senhora idosa e a criança… é como se fossem uma dualidade, certo?

Félix Dufour-Laperrière:
Sim. Pra mim, elas são alter egos paradoxais da Hélène. A criança — isso é óbvio — tem o mesmo nome. Você pode imaginar que é uma versão mais jovem dela mesma. E a senhora, ela sabe algo sobre a Hélène. Ela lê algo íntimo nela, e isso abala muito a Hélène. Ela reconhece algo de si mesma naquela mulher. Então, pra mim, a senhora também é um alter ego paradoxal. Hélène sabe disso. E o que eu tentei fazer com esses personagens foi dividir a verdade do filme entre eles. Cada um carrega uma parte dessa verdade. A senhora idosa também tem uma parte da verdade do filme. O que ela diz — como se salvar e proteger o que pode ser protegido — não está totalmente errado. Mas não é suficiente. É uma verdade parcial. E vem de uma posição muito privilegiada.

 

Por Pedro Gomes em conversa com Félix Dufour-Laperrière

Filme assistido no Annecy International Animation Film Festival (2025)

Official selection 2025 – Feature Films Official

 

Death Does Not Exist | La mort n’existe pas 
Canadá/França, 2025, 72min.
Direção: Félix Dufour-Laperrière
Roteiro: Félix Dufour-Laperrière
Elenco: Karelle Tremblay, Zeneb Blanchet, Mattis Savard-Verhoeven
Produção: Félix Dufour-Laperrière, Nicolas Dufour-Laperriere, Pierre Baussaron
Música: Jean L’Appeau

 

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