Em entrevista exclusiva, o DJ, quadrinista e agora cineasta canadense Kid Koala revela como o luto pela avó e o nascimento da filha inspiraram a criação de Space Cadet, sua estreia como diretor de longa-metragem.
Em sua estreia como diretor de longa-metragem, Kid Koala (nome artístico do multiartista canadense Eric San) entrega uma obra sensível e profundamente pessoal com Space Cadet. Inspirado pela perda da avó e o nascimento da filha, o filme parte de uma graphic novel e trilha sonora criadas pelo próprio autor para explorar temas como a memória, o luto e a busca por identidade.
Durante o Festival de Annecy 2025, Pedro Gomes, nosso sócio-fundador e crítico de cinema conversou com Kid Koala sobre o processo de transformar a dor em arte, a relação entre lembrança e criação, e sobre o robô protagonista que, para continuar existindo, precisa apagar as próprias memórias.
A seguir, você confere a entrevista completa:
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Pedro Gomes: Space Cadet trata da perda da memória, e também da perda de nós mesmos. Isso vem de uma experiência pessoal sua?
Kid Koala: Sim. Ele trata de alguns temas, mas… bom, o livro original foi inspirado num momento em que minha avó havia falecido, e eu e minha esposa estávamos esperando o nascimento da nossa primeira filha. Então, nesse momento da minha vida, como jovem adulto, eu fiquei refletindo sobre o passado, tentando lembrar e valorizar aqueles momentos realmente especiais com meus avós e meus pais. E também olhando para frente, pensando: “O que vou ensinar para minha filha algum dia?” Então, sim, é uma história bem pessoal na sua essência, mas claro, eu não fui pro espaço nem sou um robô. Tudo isso foi uma forma de colocar a história em um universo mais divertido. Mas no fundo, vem de algo muito real. Acho que lidar com os ciclos da vida, com o envelhecimento… faz parte de entender a preciosidade do tempo, sabe? Do tempo juntos.
Pedro Gomes: E como foi transformar esse luto em arte?
Kid Koala: Olha, o processo de escrever o livro foi realmente uma forma de lidar com isso. Acho que levei anos pra terminar o livro, e mais alguns anos pra terminar a música. Mas nesse processo, sim, ajudou. Me confortou. Foi uma forma de homenagear essas memórias. E agora isso evoluiu pra um longa-metragem. A Mylène (Chollet) veio, expandiu o universo pra um roteiro de longa, adicionou elementos e experiências dela. E cada artista do projeto também… dava pra perceber que eles estavam colocando algo pessoal ali. Quando vi, pensei: “Uau, isso é real”. Tem coração de verdade nisso. Foi uma alegria compartilhar essa história. E hoje, quando assisto ao filme, vejo a contribuição de todo mundo. Acho que era pra ser uma história universal, e agora vejo o trabalho incrível que todos fizeram pra transformar isso num filme. Me sinto muito sortudo.
Pedro Gomes: Então imagino que algumas das memórias mostradas no filme vieram das suas próprias memórias, certo?
Kid Koala: Algumas sim, com certeza. Lembro de uma vez que estava num restaurante e minha mãe pegou o papel que envolve os hashis e começou a dobrar. E eu, tipo, “O que você está fazendo?” Achei que ela só estava distraída. Mas de repente, bam, ela me mostrou aquilo: uma forma perfeita, tipo uma joia. Tinha dobras lindas e tudo mais. Fiquei impressionado que ela conseguiu transformar aquela tira de papel naquilo. Mudou minha perspectiva. Foi uma mudança de paradigma.
Outra vez, pedi pro meu pai desenhar um barco. E ele desenhou um navio de guerra, da marinha, super técnico, com torres, chaminés, tudo certinho. Um desenho técnico mesmo. E como criança, aquilo me impressionou muito. Pensei: “Se meu pai sabe desenhar assim, talvez eu também possa aprender”. Naquele momento, em um minuto, eu mudei de ideia. Achei que arte era algo distante, e de repente pensei: “Talvez a gente possa fazer isso também”. Esses momentos curtos da infância podem abrir seu universo.
Pedro Gomes: Foi nesse momento com seu pai que você pensou em começar a desenhar ou escrever?
Kid Koala: Com certeza desenhar. Foi imediato. Pensei: “Ah, tem alguém na minha família que pode me ensinar”.
Pedro Gomes: Sobre o robô, ele precisa apagar suas próprias memórias pra continuar existindo. Você já sentiu isso na vida real? Que pra seguir em frente, temos que deixar algo pra trás?
Kid Koala: Já senti isso? Com certeza. Acho que isso é um fato da vida. Uma parte do conflito dessa história é que o trabalho do robô como guardião meio que termina, porque a Celeste já é adulta. Ele a criou desde criança para ser uma exploradora do espaço. Agora ela está em sua missão solo, e ele está ali, esperando, sem saber o que fazer. Mas o lado esperançoso disso, pra mim, é que não importa o quão tarde seja na vida, sempre existe uma nova aventura ou desafio, se você buscar. Sempre dá pra encontrar sua voz de novo, se inspirar de novo. Mas sim, acho que pra abrir espaço pro novo, muitas vezes é preciso mudar de caminho. Mas tudo que você aprendeu antes pode ser aplicado no próximo capítulo.
Pedro Gomes: Sobre a trilha sonora, qual foi a primeira faixa que você compôs pro filme? Você lembra?
Kid Koala: O livro original tinha 15 faixas. Então o tema principal foi a primeira coisa que escrevi no piano. E essa acabou entrando no filme. Várias dessas faixas foram usadas no filme, algumas expandidas. Mas sim, o tema principal foi o primeiro.(…) Convidei minha amiga Meaghan Smith pra cantar. A voz dela tem aquele estilo mais clássico, e mesmo não sendo um musical, essa cena precisava dessa alegria porque era a última noite deles antes da missão dela. Foi uma música divertida de fazer também.
Pedro Gomes: Você compôs a música do livro depois de ilustrar?
Kid Koala: Sim. Primeiro terminei os desenhos, depois fiz a música. E nessa época minha filha já tinha nascido, de tão demorado que foi. Por isso muitas das músicas têm um tom de canção de ninar, porque ela era um bebê quando eu estava escrevendo.
Pedro Gomes: E a única faixa que você não criou foi a última, Space Song, de Beach House?
Kid Koala: Sim. Ah, eu amo essa música. Estava trabalhando nos créditos e coloquei essa música só pra ver. Me apeguei tanto que resolvi entrar em contato com a banda. Disseram que talvez eles não liberassem, mas eles foram muito gentis. Tive que escrever uma carta explicando por que essa música era tão importante pro filme. Me senti numa entrevista de emprego. E no fim, eles autorizaram. Acho que é a música perfeita pros créditos.
Pedro Gomes: Você acha que crianças entendem esse filme de um jeito diferente dos adultos?
Kid Koala: Com certeza. Espero que sim. Mas acho que crianças têm uma inteligência emocional muito alta pra temas como ciclos da vida. E como meus livros e filmes favoritos sempre me mostram coisas novas a cada vez que revejo, espero que esse filme funcione assim também. Pode até ser usado como uma ferramenta pra falar sobre perda numa família. Espero que seja um filme reconfortante.
Pedro Gomes: E o robô pinta pra não esquecer. Você acha que isso reflete algo sobre você como criador?
Kid Koala: Eu sou um pintor amador. Mas sim, eu recorro à arte pra tentar capturar sentimentos, geralmente ligados à nostalgia. Até como DJ, minha cultura vem de buscar o passado e transformar em algo novo. É como celebrar todo o tempo, inclusive o passado.
Pedro Gomes: Então o filme é mais sobre celebrar a vida e as memórias do que sobre expressar o luto?
Kid Koala: Sim. Quando dizem que o filme é triste, eu não digo que estão errados, mas pra mim é mais agridoce do que triste.
Pedro Gomes: E você acha que toda obra de arte é uma tentativa de não ser esquecido ou de não esquecer algo?
Kid Koala: Não sei… Às vezes é só a alegria de tentar criar algo, sabe? Durante esse processo, você aprende sobre si mesmo, sobre o mundo. E num filme, que envolve colaboração, você aprende muito sobre outras pessoas também.
Pedro Gomes: O robô enfrenta o dilema de deixar de existir ou deixar de lembrar. Você acredita que memória e identidade são a mesma coisa?
Kid Koala: Que pergunta, hein? (risos) Nossa, vou precisar dar uma caminhada depois dessa. Acho que memória e identidade estão definitivamente correlacionadas. Mas não sei se são exclusivamente relacionadas. Às vezes, você descobre quem você é no momento de uma determinada situação, sabe? Tipo, você pode conhecer cinco pessoas novas hoje à noite e, de repente, perceber: “Ah, é esse o meu lugar no universo” ou, pelo menos, “é esse o meu papel nesse momento específico”. Não sei. É uma situação meio imprevisível reunir pessoas e interações, né?
Mas com certeza — tipo, eu sou DJ, então às vezes eu fico nesse modo de manutenção, meio pensando: “Ok, temos que manter a pista de dança animada” ou “precisamos manter essa vibe”. Mas em outras vezes, eu só quero ficar nos bastidores, fora do palco, só fazendo o que tenho que fazer, sabe? Então, acho que isso muda. Mas, pra mim, o que espero é que minha identidade não esteja toda no passado. Tipo, eu não passo todos os dias olhando pra trás.
Por Pedro Gomes em conversa com Kid Koala. 12 de Junho de 2025.
Filme assistido no Annecy International Animation Film Festival (2025)
Feature Films Contrechamp
Space Cadet
Canadá, 2025, 86min.
Direção: Kid Koala
Roteiro: Mylène Chollet
Direção de Arte: Corinne Merrell
Produção: Ginette Petit, Nathalie Bissonnette
Música: Karen O, Mariana ‘’Ladybug’’ Vieira, Kid Koala
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