A saga profunda por justiça e a luta de toda uma parcela da população representada de forma ética e ao mesmo tempo subjetiva.
Existem assuntos que são sensíveis à maioria das pessoas. Certos tipos de violências que atingem a alma com uma profundidade avassaladora, que tocam naquilo que temos de mais íntimo e pessoal. Assuntos sobre os quais não queremos falar ou saber. Entretanto, ali estão eles. E existe um paradoxo muito grande de que quanto mais sensíveis estes assuntos, mais eles precisam ser discutidos e colocados sobre os holofotes. Pelo menos, é o que se pretende quando se trata de um estupro.
Mas como falar? Como dizer de algo que faz com quem se viu vítima se sinta vergonhoso, repleto de medos de represálias, além do julgamento certeiro das pessoas que dele sabem? Como pedir por justiça quando o sistema é feito para desapoiar o procedimento, tornando-o moroso e cheio de burocracias, para não dizer subterfúgios no intuito de se fazer desisitir?

Esse é o contexto em que se viu a jornalista Shiori Ito em 2017 e nos anos que se seguiram. Vítima de abuso sexual de uma figura influente no Japão, ela se viu na posição não só de vítima que precisa de justiça, mas de jornalista personagem de sua própria matéria. Com uma coragem que revirou o sistema de justiça japonês (retrógrado e conservador), Ito enfrentou um moroso processo penal e civil, acusando o seu algoz em busca de um veredicto justo. Escreveu um livro contando sua história, livro este que leva o seu rosto (algo ainda mais corajoso em casos de abusos sexuais, em que as vítimas em sua grande maioria não querem expor suas identidades, por motivos mais do que compreensíveis). E durante todo esses anos de luta, Ito registrou o processo. O resultado é uma espécie de diário, que podemos assistir em Black Box Diaries, documentário indicado ao Oscar desse ano.
Ver este filme é como assistir a um thriller. A forma como Shiori Ito narra a sua saga nos pega pelo coração, colocando-nos na torcida por sua vitória. A maneira como ela traz pessoalidade e, ao mesmo tempo, a objetividade jornalística faz com que ansiemos pelo próximo passo, pelas novidades processuais e também pelo acompanhamento pessoal dos sentimentos de Ito.

O Japão, país de Ito e onde ocorreu o crime, é ainda extremamente sensível a tais assuntos. Se no Brasil vemos uma enorme dificuldade ainda com tamanhos avanços, o Japão se mostra mais atrás, nesse sentido. Especialmente se o assunto envolver alguém com “costas quentes”.
É um filme com gatilhos muito fortes, especialmente para quem é sobrevivente de algum tipo de abuso. É também um filme que carrega uma força de impulso a todos aqueles que continuam lutando e aos que tem dúvidas sobre a luta.

Enquanto documentário, existe uma linha narrativa característica. Mas mais do que isso, o lado jornalístico da abordagem é o que faz com que Black Box Diaries se torne ainda mais interessante de ser assistido. A dicotomia em dirigir a própria história, ser protagonista dela e usar da profissão de jornalista para transformar tudo em um registro ético e ao mesmo tempo artístico faz do filme um dos mais interessantes do gênero.
Crítica por Bianca Rolff.

Quatro Paredes | Black Box Diaries
Reino Unido, Japão, Estados Unidos, 2024, 103 min.
Direção: Shiori Ito
Roteiro: Shiori Ito
Elenco: Shiori Ito, Noriyuki Yamaguchi, Shinzo Abe
Produção: Eric Nyari, Hanna Aqvilin, Shiori Ito
Direção de Fotografia: Yuta Okamura
Música: Mark degli Antoni










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