Um retrato fiel e empático de uma das dores mais subestimadas da infância: A saudade.
A saudade é uma das dores mais subestimadas da infância. “Meu Verão com Glória” (Ama Gloria) é um filme que não apenas compreende essa dor, mas a traduz com uma delicadeza empática. Poucos filmes conseguem capturar com tanta ternura e sinceridade os laços que se formam entre duas pessoas, inevitavelmente destinadas a se separar.
A história segue Cléo, uma menina de seis anos, e sua babá, Gloria, uma mulher que lhe oferece não apenas cuidado, mas amor, carinho e segurança. Glória não é apenas uma cuidadora, ela é um mundo inteiro para Cléo, um porto seguro, um colo onde a menina encontra aconchego e uma fonte inesgotável de afeto. No entanto, uma tragédia familiar exige que Glória volte para sua cidade natal. Antes da despedida definitiva, Cléo passa um último verão ao lado dela, sem compreender completamente que aquele será o último capítulo de uma história que marcará sua infância.

“Todas as minhas memórias são com você.”
Pouco se fala sobre a dor das crianças ao perderem alguém que fez parte de seu mundo. A sociedade tende a minimizar esse sofrimento, a tratá-lo como algo passageiro, sem perceber que a infância é feita de primeiros amores, ciclos e despedidas. E, para uma criança, uma despedida pode significar o primeiro contato com a dor da saudade, que pode até ser amenizada, mas não tem cura. “Meu Verão com Gloria” compreende essa dor de uma maneira que poucas obras tiveram coragem de explorar. Mais do que a história de uma menina e sua babá, este é um filme sobre a inevitabilidade da perda, não pela morte, mas quando causada pela própria impiedade da vida.
A câmera intimista capta os gestos mínimos com uma ternura quase divina: um toque de mãos, um olhar demorado, a forma como Gloria lava as pequenas orelhas de Cléo com todo o cuidado do mundo no banho. O filme não tem pressa em contar sua história porque entende e respeita a importância do tempo. Cada cena permite que o público sinta a delicadeza e o amor das duas; e quando o sentimento se torna complexo demais, o filme se transforma em uma poesia visual em aquarela que nos imerge nesse universo belo e devastador.

É fácil esquecer como os sentimentos, tão claros para nós hoje, eram enigmáticos quando éramos pequenos. A obra nos lembra que, para uma criança, o mundo ainda é um lugar cheio de emoções sem nome e além da compreensão. Cléo ama Gloria de um jeito puro e indivisível. Para ela, qualquer rachadura nesse sentimento representa uma ameaça. Um exemplo disso é quando Gloria canta para seu neto a mesma canção de ninar que costumava cantar para Cléo. Isso faz com que a pequena se sinta traída. A música era um símbolo do vínculo entre as duas, e de repente perde sua exclusividade. O ciúme infantil é na maioria das vezes interpretado como birra, mas na verdade é extremamente genuíno e é apenas um reflexo irracional da angústia de perder alguém que se ama. Cléo não consegue racionalizar isso ainda, e não entende que o amor não diminui quando é compartilhado. Para ela, se Gloria é capaz de cantar a mesma música para outra criança, ela já não é mais tão especial. Esse instante do filme nos lembra da intensidade da infância e de que o peso que os pequenos momentos têm na construção emocional delas não deve ser subestimado.
É esse olhar sensível para os sentimentos infantis que faz “Meu Verão com Gloria” ser tão impactante. O filme nos lembra que, para uma criança, o mundo ainda é uma confusão de sentimentos desconhecidos e sem explicações. Cléo não sabe dizer que sente medo de perder Gloria, pois ela não sabe nomear a sensação de perceber gradualmente que as coisas não serão como antes. A primeira experiência de perda não precisa ser a morte para ser avassaladora.

“Ser amado por uma criança é um dos sentimentos mais puros que alguém pode experimentar.”
Além disso, há ainda a dor silenciosa de Gloria. Cléo está apenas começando a entender o que significa perder alguém, mas Gloria já conhece essa dor profundamente e sabe que seu tempo com Cléo está contado. Ela sabe que em breve não poderá mais proteger aquela menina, cantar canções de ninar ou simplesmente ouvir sua risada. A obra retrata com plena maestria a dor de todas as pessoas que cuidam ou cuidaram de crianças que não são suas: um amor imenso e incondicional, acompanhado da certeza cruel de que um dia precisarão soltar suas pequenas mãos e “deixar ir”. Gloria esteve ali em todos os momentos importantes, ajudando a menina a dar seus primeiros passos no mundo, sendo sua confidente, sua protetora e não sendo apenas uma babá, mas sim um refúgio de carinho e um porto seguro.
O seguinte parágrafo contém spoiler:
“Cléo, não esquece que eu te amo.”
Cada momento compartilhado, cada gesto de carinho, cada risada, cada abraço carregam consigo o medo de que, em breve, tudo será apenas uma lembrança. E é essa dualidade que torna o filme tão doloroso e belo ao mesmo tempo. Se aproximar, amar, cuidar e criar uma relação aparentemente indestrutível com um ser tão pequeno e inocente que, no fim, você precisa soltar mesmo que isso lhe destrua por dentro é uma das coisas mais humanas que alguém pode fazer. E assim como Gloria em sua cena final, uma hora será preciso engolir o choro e seguir a vida. A única certeza que resta é a de que a memória do que viveram juntas permanecerá. A despedida é um dos momentos mais dolorosos para quem ama uma criança que não pode criar para sempre. O filme entende esse sentimento com uma sensibilidade impressionante, mostrando que, por mais que doa, o amor que foi dado nunca se perde, ficando guardado em um canto especial da memória.

“Menininha do meu coração, Eu só quero você A três palmos do chão. Menininha, não cresça mais não, Fique pequenininha na minha canção… E se lembre de mim Pelas coisas que eu dei, E também não se esqueça de mim Quando você souber enfim De tudo o que eu amei.”
~ Valsa Para Uma Menininha, Vinicius de Moraes e Toquinho.
Apesar de tudo isso, o filme não se rende à tragédia em momento algum. A saudade é devastadora, mas há uma beleza em tudo que é efêmero. O que importa não é a separação, mas os momentos felizes que foram compartilhados. “Meu Verão com Gloria” nos lembra que a vida é feita de memórias, que tudo que amamos permanece dentro de nós, moldando quem somos. A infância de Cléo será marcada pelo amor de Gloria, e ninguém pode tirar isso dela. A beleza da saudade é que ela não pode coexistir com a infelicidade. Não é possível sentir saudade do que um dia não foi feliz.
No fim, o longa é sobre esse amor que transcende a despedida. Este é um filme que precisa ser sentido, vivido, absorvido. Um filme perfeito, que ressoa no coração como uma canção de ninar esquecida, mas nunca apagada da memória. “Meu Verão com Gloria” é um dos, se não o filme mais terno do cinema moderno. A beleza de expressar um sentimento tão complexo em formato de filme é deslumbrante. Poético, mágico e singelo.
Crítica por Pedro Gomes.
Meu Verão com Gloria | Ama Gloria
França, 2023, 84 min.
Direção: Marie Amachoukeli
Roteiro: Pauline Guéna, Marie Amachoukeli
Elenco: Ilça Moreno, Louise Mauroy-Panzani, Fredy Gomes Tavares
Produção: Bénédicte Couvreur
Direção de Fotografia: Inès Tabarin
Música: Amine Bouhafa
Classificação: 12 anos
Distribuição: Filmes do Estação










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