Uma maravilha perturbadora que explora o sofrimento e a obsessão pelo corpo perfeito sob a ótica de uma crítica feroz e cruel ao padrão de beleza hollywoodiano.
O novo filme dirigido por Coralie Fargeat (Vingança), traz Demi Moore e Margaret Qualley em uma narrativa de horror corporal que explora o desejo humano pela juventude e perfeição. Na trama, após ser demitida da TV por ser considerada “velha demais” para sua atriz, Elisabeth Sparkle recorre a um sinistro programa de aprimoramento corporal. A substância milagrosa promete rejuvenescê-la, mas resulta em uma transformação ainda mais radical. Ela agora precisa dividir seu corpo com Sue, sua versão jovem e melhorada, e, aos poucos, começa a perder completamente o controle da própria vida.
A experiência cinematográfica que o espectador vive aqui é completamente visceral. Fargeat entrelaça o horror psicológico com o corporal num roteiro extremamente inteligente e autêntico. Demi e Margaret contracenam em suas interpretações extremamente fortes, simbolizando a dualidade entre corresponder aos padrões inatingíveis de beleza e juventude infinita e o desejo de controle sobre o próprio corpo. Enquanto uma atriz abraça a crítica sobre algo que tem completo conhecimento, a outra repesenta magistralmente a idealização da juventude, e, ao mesmo tempo, incorpora a desconfortável realidade de que a “perfeição” é tanto física quanto psicologicamente destrutiva.

“Você já sonhou com uma versão melhor de si mesma? Mais bonita? Mais perfeita?”
O estilo visual do filme remete a clássicos do gênero. A transformação corporal de Elisabeth é retratada de forma grotesca e fascinante, evocando claras influências cinematográficas, como “A Mosca” (1986) de David Cronenberg, e a estética psicológica de Darren Aronofsky. Essa fusão de estilos cria uma atmosfera perturbadora e visualmente inovadora. O horror corporal combinado com a densa crítica sobre o culto da juventude em Hollywood torna o filme uma obra única e provocativa.
O início do longa pode parecer simples, mas é extremamente estratégico e memorável. Somos apresentados à estrela de Elisabeth Sparkle na Calçada da Fama em um momento de louvor e aparente imortalidade (ou eternização) de uma artista. Com o passar do tempo, essa estrela deteriora, sendo pisoteada ao longo dos dias, virando os holofotes para a realidade efêmera de Hollywood. Até aqueles que atingem o auge são eventualmente normalizados e esquecidos. Essa progressão visual prepara o terreno para o que a diretora pretende mostrar com sua obra: a deterioração física e emocional diante da busca incessante pela juventude. Arrisco à dizer que até mesmo o sobrenome da protagonista foi uma escolha certeira: “Sparkle”, que significa “Brilhar”, em português.

“Eu preciso de você porque eu me odeio”
O ódio de Elisabeth por si mesma expõe a profundidade visível da sua angústia. Esse sentimento é mais do que superficial e reflete anos de pressão para que ela mantenha a juventude e beleza a todo custo. Sparkle se torna uma expressão crua de autodestruição e rejeição. Sua obsessão com os padrões impostos refletem o medo de ser descartada, e suas ações demonstram um esforço desesperado para cobrir aquilo que ela considera imperdoável em si mesma: o envelhecimento.
A fotografia merece uma atenção especial. Com a utilização de ângulos abertos e distorcidos, Benjamin Kracun alterna entre close-ups grotescos dos detalhes mais repulsivos e planos mais amplos, criando um desconforto visual contínuo. Esse desconforto também é atenuado nas cenas em que Sue está gravando seu programa de televisão. A câmera, sempre invasiva, deliberadamente foca em partes específicas de seu corpo em closes cruéis e super sexualizados. Isso ressalta a forma que o corpo feminino é tratado muitas vezes nessa indústria apenas como um objeto de desejo. O uso de lentes angulares e cores vibrantes amplia ainda mais o contraste entre a falsa promessa de beleza e a realidade horripilante explorada pelo longa. Vale ressaltar também o trabalho excepcional e completamente impressionante da maquiagem em todas as personagens. Tenho um forte pressentimento de que essa será uma categoria valorizada na próxima premiação do próximo Academy Awards.

“Você ainda me amará quando eu não for mais jovem e bonita? Você ainda me amará quando eu não tiver nada além da minha alma dolorida? Eu sei que você vai.”
~ Young and Beautiful, Lana Del Rey
A obra é uma alegoria direta sobre a descartabilidade das pessoas em Hollywood, especialmente mulheres mais velhas. A trajetória da protagonista é interessante para pensarmos na realidade cruel de atrizes que, ao envelhecerem, são marginalizadas e substituídas por versões mais jovens. A transformação de Elisabeth em Sue é uma grande reflexão sobre esse processo de desumanização enfrentado por muitas artistas, que se veem pressionadas a manter uma aparência artificial em um ambiente que glorifica a juventude acima de tudo. O tempo todo, Coralie Fargeat evidencia de forma sombria e corajosa o quanto esse sacrifício pela impossível juventude eterna leva à perda de identidade e à destruição pessoal.

“A Substância” não só expõe o preço da busca pela perfeição física, mas também destaca a maneira como as mulheres são tratadas como descartáveis na indústria cinematográfica. O martírio da personagem principal é uma metáfora para o ciclo de renovação e descarte de Hollywood, transformando corpos e almas em mercadorias temporárias. É um filme cruel, doloroso e até satírico considerando os seus vinte minutos finais. De forma indigesta, Coralie joga verdades sobre a tela e transborda desconforto em uma autêntica obra de arte.
Crítica por Pedro Gomes.

A Substância | The Substance
Reino Unido, 2024, 141 min.
Direção: Coralie Fargeat
Roteiro: Coralie Fargeat
Elenco: Demi Moore, Margaret Qualley, Dennis Quaid
Produção: Eric Fellner, Coralie Fargeat, Tim Bevan
Direção de Fotografia: Benjamin Kracun
Música: Raffertie
Classificação: 18 anos
Distribuição: Mubi/Imagem Filmes










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